Ritual xamânico: é preciso derrubar mitos

por Ana Carvalho – idealizadora Consonare

“Você teve alucinações tomando ayahuasca”? Esse é o primeiro julgamento e mito que as pessoas jogam sobre seus ombros assim que você declara aos amigos que você vivenciou um ritual xamânico, a medicina das florestas.

Antes de tudo, é preciso derrubar o mito que cerca o chá ayahuasca e ir à essência do que significa tomar esse chá com todo respeito e ritual do qual ele faz parte. Assim como os orientais cultuam a cultura do chá, o fato da ayahusca estar presente significa apenas um meio, e não um fim em si.

Na linguagem Quechua, aya significa espírito ou ancestral, e huasca significa vinho ou chá. Seu uso remonta 2.000 anos a.C., sendo utilizado em interdisciplinariedade que remete à cultura, à saúde emocional e à espiritualidade.

Não vi gnomos com ayahuasca

Participei da cerimônia xamânica em Camboriú em maio de 2020, em uma chácara da terapeuta holística Raiza Schissel e do seu marido, Alexandre Melo.

Um ambiente totalmente agradável, cercado por mata, com o cuidado e o acolhimento de Raiza e Alexandre (Universo Vital). Além disso, ali estávamos todos protegidos, já que cada um dos participantes contava com guardiões que estavam sempre ali a vigiar o que se passava conosco durante o processo.

Antes do ritual, eu tive o privilégio de assistir ao casamento xamânico de Raiza e Alexandre. Ali, o pajé que presidia a cerimônia ofereceu ayahuasca aos convidados que sentissem o chamado no coração. Nada imposto.

Eu senti esse chamado e tomei o chá. Não vi gnomos como a massa ignara acha que será o efeito alucinógeno. Porém, dali a alguns minutos veio muito muito choro jorrando da minha alma. Recém-separada, não havia ainda chorado o choro da perda e angústia estava acumulada. Ali já me aliviei um pouco do peso, da culpa e do fracasso por não ter conseguido obter êxito nessa área da vida.

O sopro do rapé e seus efeitos

Passada a cerimônia matrimonial, o ritual em si começou 15h30 e cada um foi acomodado num colchão na grama e ao lado baldes que não soube por qual razão até precisar de um (hehe).

No começo, muito respeito, oramos um Pai-Nosso, uma Ave-Maria, uma oração ao nosso anjo da guarda e lá iniciamos. O tema do ritual daquele fim de semana fazia homenagem a todas as relações. Caiu como uma luva para mim e o meu momento.

Primeiro, o casal que conduzia o ritual soprava o rapé nos participantes, um a um. Para quem não sabe, o rapé faz parte da medicina sagrada indígena, usada há milênios. Trata-se de um pó fino, feito do tabaco orgânico, folhas das mais variadas origens e cinzas de árvores.

Recebi a instrução para respirar fundo, segurar a respiração e esperar que Raiza soprasse o rapé no meu nariz. Primeiro o direito, depois o esquerdo. Depois do sopro, a instrução é respirar apenas pela boca. Assim eu fiz. O efeito, posso confessar, foi mais forte do que tomar o chá.

Na mesma hora meu corpo todo ficou amortecido e uma tontura gigante tomou conta de mim. A tal ponto que dois guardiões me levantaram e me encaminharam para meu lugar. Fiquei deitada tempos sentindo o mundo girar até que pude me sentar sem desmaiar.

O rapé, explica Alexandre, tem como objetivo alinhar as energias de cada um ali presente para que haja uma sinergia, um equilíbrio. Tudo para que possamos acessar nossa consciência, nossa essência.

Três doses de ayahuasca: rumo à essência

Ali comecei a sentir enjoo, mas foi na etapa seguinte, ao tomar a primeira de três doses de ayahuasca (a dose corresponde a um copinho de café, não mais do que isso), que um incômodo na boca do estômago tomou conta por completo. E daí foi descobrir a serventia do balde: cuspi até que tive de vomitar. Um vômito literal, mas simbólico também. De tudo que não faz sentido, de tudo que eu queria dar adeus.

E então fiquei num estado de mais leveza após colocar tudo para fora. Na segunda dose, novamente vômito, mas em menor quantidade. E então comecei a ter contato com minha essência espiritual.

É bom ressaltar que cada um tem uma reação diferente em relação ao ritual. O chá vai atuar de acordo com as necessidades de cada um. Para mim, ocorreu dessa maneira.

Espiritualidade à flor da pele

Já na terceira dose, que para mim na verdade era a quarta (havia tomado uma dose no casamento, lembra?!), e ali não senti mais enjoo. Apenas comecei a me embalar pelos sons xamânicos e me entreguei ao momento.

E aconteceu de forma linda para mim. Eu me levantei, me ajoelhei em frente a um altar com várias imagens, e me pus a trabalhar pela espiritualidade.

Na adolescência já frequentava a chamada mesa branca do Espiritismo de Allan Kardec e quando adulta já fui várias vezes na umbanda e sempre me identifiquei com Jurema. E lá estava ela, na minha frente. Não, não era alucinação do chá . Havia um pano com uma linda imagem da cabocla Jurema bem em frente ao meu lugar. E não foi à toa.

Para quem não sabe, a Cabocla Jurema é considerada a rainha das matas e é muito conhecida por sua beleza. É filha mais velha do caboclo Tupinambá e irmã de Jupira e Jandira, estas também com poderes e respeitadas por todos.

Comecei então a liberar minha espiritualidade. Fiquem em frente ao fogo, este inclusive um capítulo à parte. Ele tem o poder de transmutar tudo que ali era vivido. As pessoas se aproximavam dele como quem se despede de algumas cascas.

Guias orientais e índios

De frente para a fogueira, com os olhos fechados, fui dando passagem suave e tranquila a várias entidades. Pude identificar orientais e índios. Como identifiquei? Pela sensação no corpo, suave, e pelos movimentos que passei a executar com as mãos. Movimentos do símbolo de yin e yan em forma de vibração como se estivessem ali os guias espirituais para trabalhar em prol de todos, inclusive de mim. E tudo conscientemente, sem alucinações.

Um dos momentos mais marcantes foi quando abri os olhos e avistei uma moça deitada no chão. Algo me dizia para eu ir lá. E fui. Fiquei distante dela, mas comecei a fazer movimentos frenéticos que logo tocaram o solo. Cavei com ambas as mãos algo que não sabia o que era. Minhas mãos e unhas ficaram pretas. Quem se importa quando se está fazendo o bem?

Mais tarde, em seu depoimento, constatei que ela tinha dificuldades em abandonar certos padrões familiares e sentia muita raiva e rancor. Daí eu entendi o que eram aqueles meus movimentos de enterrar tudo aquilo, deixar para trás, deixar-se ir. Foi lindo saber desse desfecho, enquanto outros eu simplesmente não precisava racionalizar. Apenas sentir.

Uma experiência única e inenarrável

Dessa primeira experiência xamânica, só posso acrescentar uma coisa: todo ser humano deveria se permitir ser tocado pela força que existe na medicina dos nossos índios, dessa sabedoria milenar e que não damos a devida importância.

Ela é nativa do nosso povo, da nossa raiz. Porém, por vários preconceitos, julgamentos e histórias mal contadas, simplesmente rechaçamos.

É inenarrável o que vivi e coincidentemente (não há isso para o Universo, mas sim de forma sinérgica) durante a lua de Wessak, a lua cheia de maio onde Buda se iluminou e morreu.

O dia 30 de maio de 2020 vai ficar guardado no meu coração, porque foi um divisor de águas, o término de um ciclo para a chegada do outro. E só fazemos isso quando nos abrimos às oportunidades.

Cada um no seu processo, mas todos buscando a autocura, o autoconhecimento, a sua essência. Eu encontrei a minha. E você, como está essa busca?


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